quinta-feira, 3 de novembro de 2016

O Visitante

O Visitante - 2015
Dan Porto


Diziam as mulheres que São Pedro ajudava, fazia um dia limpo e o calorão do verão já se anunciava. O batizado ocorrera pela manhã, bem cedo, enquanto os peões abriam uma vala para o churrasco que às dez já brilhava nos espetos de taquara. Os piás corriam sob gritos das mães para que tomassem cuidado, não fossem rasgar os panos novos. As meninas brincavam de passa-anel e cinco-marias, todas bem colocadas em seus vestidos engomados. Na cozinha ficavam prontos os acompanhamentos, enquanto da mesa montada sob a figueira o gaiteiro atacava uma valsa chorosa.

Quando a refeição estava para ser servida, à cabeceira da mesa, homens de um lado, mulheres do outro e as crianças à mesa dos inocentes, Abílio ergueu um copo de vinho à saúde do neto que havia sido batizado naquele dia. Aplausos e gritos de viva se seguiram. A única que não parecia feliz era dona Oátila, mas talvez fosse preocupação com a festa, afinal, para um serviço de dia inteiro, havia muito com o que se preocupar! Mas tudo parecia bem e, como havia sido previsto, o churrasco da carneação de setembro começou a circular em torno da mesa e deveria ser assim por uma hora.

— Vem alguém, seu Abílio — sussurrou um dos peões, enquanto fingia servir o patrão.

Podia se ver um cavaleiro a mais ou menos um quarto de légua. Parecia que o cavalo vinha a passo, a poeira levantada se punha como um fundo de tela a óleo, ou um manto a proteger cavalo e cavaleiro, ambos pintados com distorção. Demorou-se a alcançar o arredor da casa, mas mesmo a curta distância era irreconhecível.

— Vá ver quem é e o que quer! — ordenou Abílio ao mesmo peão que lhe avisara da aproximação do cavaleiro.

Não demorou muito a voltar o peão. O forasteiro queria falar com o dono da casa e não adiantara o assunto, só disse que era urgente. Abílio se levantou demonstrando incômodo e andou em direção à porteira na companhia de três dos seus homens. Os convidados ficaram alvoroçados, os homens puseram mão às adagas e as mulheres chamaram as crianças. Mesmo que tenham demorado, ninguém foi até o grupo que conversava na porteira, porém logo a desconfiança foi trocada por curiosidade ao avistarem o estancieiro abraçar o forasteiro e, lado a lado, andarem em direção à mesa.

— Tomem seus assentos, senhores — disse Abílio, sorrindo. — E você, Tenório, ­vá se lavar e depois se abanque e coma — ordenou ao recém-chegado.

A alguns a atitude do anfitrião pareceu despreocupada demais. Outros acharam estranho, mas jamais ousariam contestá-lo. Porém, cerca de dez minutos depois a festa ia tão bem quanto antes. Comia-se e bebia-se à vontade. O serviço não parava, eram espetos disso e daquilo, gamelas de legumes, pratos de arroz, copos de vinho, um exagero de tudo, até de alegria. Aos que olhassem com distanciamento é certo que perceberiam certa estranheza no ar, algo de dissimulação, farsa talvez, mas não seria possível dizer ao certo o que era, então o melhor era comer e beber, porque festa assim não se tinha todo mês naqueles lados.

— Tão logo se casaram e já veio o filho! — exclamou uma senhora mais capciosa para a mãe do menino recém-batizado.

— E macho ainda por cima! — berrou outro lá da ponta da mesa, já um pouco alterado pelo vinho.

Ancelmo, filho de Abílio e pai da criança em questão, parecia feliz com a festa, e ria e recebia os cumprimentos, mas dona Oátila percebia, lá do seu lugar, volta e meia um olhar de ódio entre ele e a esposa, e não entendia o que podia haver de errado. Está tudo tão bem, tão a contento, pensava, e olhava em volta à procura de algum problema. Mas está tudo arreglado, os empregados em volta da mesa a servir os convidados, tudo, tudo, tudo está bem, o que poderá ser, ela se perguntava, e não encontrava resposta.

Quase duas horas após o princípio da refeição os últimos a pararem de comer começaram a se levantar. Uns gemiam porque haviam exagerado, outros preparavam e acendiam palheiros e as mulheres conduziram as crianças para se lavar. As sobras de ambrosia, sagu, creme de leite, espera-marido e dos pudins e das tortas começaram a ser retiradas. Fora uma refeição completa.

— Completíssima, eu diria, senhor Abílio. — Disse uma vizinha. ­— Que bela recepção! Tome aqui os meus parabéns. — E riram os vizinhos e compadres e amigos.

Mal se tinha acalmado o vai e vem das criadas entre a mesa e a cozinha e as crianças haviam sido postas a sestear, pedindo licença, Tenório convidou o dono da casa para um jogo de truco.

— Espero que não se ofenda, seu Abílio, mas seria muito do meu agrado poder jogar com o senhor, já que corre por aí a sua fama de bom jogador.

Abílio riu-se com frouxidão:

— Bom jogador?! — e interrogava com o olhar os homens que o cercavam — Meu filho, eu ousaria, com modéstia, é claro, mas ousaria dizer que sou o melhor jogador desta região.

— Tanto melhor, pois!

— Que seja — disse Abílio. O olhar desconfiado, o cenho franzido, um sorriso preso no canto direito da boca.

De pronto a mesa foi arreglada. Uma cadeira de cada lado, o patrão contra o forasteiro. Os homens ficaram na volta, os mais experientes se puseram atentos ao jogo que cada um armava. Tenório abusava, desafiava o patrão, se punha agressivo nas jogadas, preocupava os mais velhos. A tensão crescia sob os cinamomos, Tenório dava mostras de estar melhor na partida, os homens se preocupavam. Ouviu-se o choro de uma criança no momento exato, parecia calculado, ensaiado, no exato instante em que o forasteiro levantou o braço para bater o jogo. E foi impedido de fazê-lo.

— Deixa, João, — disse Abílio, sem se alterar, para o peão que segurava o braço erguido de Tenório, as cartas na mão — deixa ele bater.

— Não é preciso ­— soltou Tenório, a face vermelha —, eu não vim aqui para isso, mas para te matar, infeliz! — E jogou as cartas na direção do dono da casa.

Antes que se levantasse o forasteiro foi agarrado e imediatamente posto ao chão pelos homens do estancieiro, sem nem que Abílio tivesse que se mexer.

— Diga, desgraçado, o que está fazendo aqui e o que procura?

— Meu pai... Tu “deixou” pobre o meu pai... tirou tudo dele...

— Do que é que está falando, homem? Quem é o teu pai?

O mormaço foi cortado pelo som agudo de um tiro, seguido por um grito horrendo e pelo choro esganiçado de uma criança. Não tardou a surgir de trás do galpão a figura de Ancelmo, visivelmente alterado. Trazia o filho no braço, aos prantos, e na outra mão o revólver. Ameaçava matar a criança, mas tardou por conta do grupo de mulheres que se precipitou para fora da casa em alvoroço e o distraiu, dando tempo à dona Oátila de arrancar o menino dos braços do pai.

— O que passou, homem, está louco? — indagava Abílio, pela primeira vez no dia com surpresa nos olhos, e sacudia o filho pelos braços.

Ele contou. Encontrou a mulher com o peão Adelar ao fundo do galpão, matou os dois e queria matar o piá, que devia ser filho do outro...

***

Os passarinhos já faziam barulho nas copas das árvores no entorno da casa quando ele chamou o capataz e mandou reunir meia dúzia de homens. Montaram os sete e saíram sem dar aviso a ninguém. Cavalgaram em silêncio enquanto o Sol subia no horizonte e três horas depois estavam de tocaia, todos camuflados entre árvores e pés de ananás. O cavalo do homem que vinha na direção do grupo atocaiado nem teve tempo de mexer as orelhas. Abílio desferiu um tiro e logo os homens fizeram igual. Sete balas de doze.

O corpo foi arrastado da estrada para o mato. Todos olharam o morto, mas ninguém o reconheceu, só o patrão que havia visto o seu rosto em sonho. Enquanto os homens punham o cavalo de Tenório a cabresto e se preparavam para partir, Abílio tomou seu trinta e oito do coldre e desferiu um tiro à queima roupa em Adelar. Quando o homem caiu, ninguém disse nada, o mesmo silêncio que só fora quebrado pelos tiros parecia acordado entre o grupo. Então Abílio olhou para os peões, abriu um sorriso e enquanto montava em seu cavalo falou com animação:

— Vamos embora, homens. É o dia do batizado do neto e o avô não pode se atrasar. Vamos!

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